Guilherme Bonfanti | Luz e Improvisação na Cena

Luz e Improvisação na Cena

O criador em estado de libertação

Em 2005 eu era iluminadora há quinze anos. Debutante de ofício que, como toda debutante, imagina que já sabe tudo da vida ou, no caso, da profissão. Comecei na carreira por osmose, namorando um iluminador e, com ele, em parceria, assinei meu primeiro projeto. De lá para cá, em carreira solo, foram mais de duas centenas de desenhos de luz para teatro, música, ópera, dança, dvds… mas, agora, tenho a certeza de que nunca saberei tudo o que gostaria de saber e de que todo o trabalho pode ensinar algo de novo.

 

Em 2002 iniciou-se um novo ensinamento. Naquele ano tive meu primeiro contato profissional com a diretora Cristiane Paoli Quito: era um show musical, com direção sutil porém surpreendente, pois meu rigor e perfeccionismo foram desbancados pela doçura dos seus elogios e pelos pedidos de quebra com a formalidade que separava operador e palco. No ano seguinte desenhei a luz de outro projeto da Quito para a EAD, O inspetor geral, e então assumimos uma parceria artística que eu não podia imaginar aonde chegaria.

 

De novo em 2005, o espetáculo Aldeotas, com texto de Gero Camilo e atuação dele e de Marat Descartes. Além da luz, criei a cenografia – que considero o marco zero da minha carreira como cenógrafa – e lá pude experimentar pela primeira vez, de fato, a improvisação na operação de uma luz. Claramente uma nova etapa na minha vida profissional se iniciava. O processo de criação desse desenho de luz foi similar ao de qualquer outra luz, aliás desenhar um projeto de luz para espetáculo improvisado obe dece às mesmas etapas de criação de um projeto com estrutura fechada. Ler textos, assistir a ensaios, assistir a ensaios, assistir a ensaios… que, no caso, eram diferentes a cada dia, um contínuo treinamento, já que o espetáculo não tinha nenhuma marca definida, apenas um guia de cenas que deveria ser seguido. O jogo teatral era latente entre os dois atores, uma escuta constante entre eles. Proposição e resposta que geram proposição e resposta.

 

Sem espaço físico determinado, o teatro como um todo era o limite da peça. Para a luz, eu perseguia uma série de imagens que o texto proporcionava – céu diurno e noturno, açude, o centro da Terra e inúmeros outros espaços –, mas como compor ao vivo esses elementos era o grande desafio. Como eu poderia entrar nesse jogo se não havia como treinar junto com os atores, já que a chegada ao teatro para montagem de luz era uns poucos dias antes da estreia? Ficava então sentada em sala de ensaio imaginando como seria essa realização. Como seria uma operação “aberta”. Chamo de operação “aberta” aquela em que não existe um roteiro predeterminado de cenas, com deixas definidas de acordo com o texto ou com a movimentação de intérpretes. É uma utilização dos efeitos de iluminação acontecendo em tempo real. Com a tomada de decisão de qual luz, movimento de luz ou tempo de fusão é o mais adequado para aquele momento.

 

É essencialmente um exercício de escuta entre operador e intérprete. E diferentemente do que se pode imaginar, não é um trabalho no qual o operador/criador segue os intérpretes em seu livre uso do espaço. O operador/ criador é proponente também, seja no posicionamento de uma cena no espaço, seja editando as imagens, seja provocando um ritmo ou mesmo definindo com a luz o final de um espetáculo. Improvisação é uma palavra que pode ter o sentido pejorativo de algo feito não da maneira ideal, um método alternativo e por isso com menor qualidade. Mas, neste caso, o trabalho improvisado é uma opção de linguagem. É ainda uma alternativa à repetição gerada pela operação de um roteiro de luz formal – que reproduz diariamente um mesmo desenho, gravado ou não em uma memória virtual (que, claro, é o que alguns espetáculos necessitam) –, dando a esse operador de mesa a possibilidade da expressão.

 

Estar na mesa de luz de um espetáculo aberto, improvisado, é estar lado a lado com a criação, é estar na cena também e implica domínio técnico absoluto dos equipamentos utilizados, pois as decisões são tomadas num rompante e o equipamento precisa ser familiar para que o resultado esperado aconteça no momento certo. Além disso, é necessário domínio de composição plástica e do universo da peça, pois além da decisão correta, espera-se que a luz seja bela e ajude na narrativa do espetáculo.
É preciso também que o envolvimento pessoal do operador seja mais profundo: chegar horas antes do espetáculo e compartilhar do espírito do grupo naquele dia faz com que todos estejam numa mesma qualidade de “escuta” no momento da apresentação. E como não há o momento de “passar” aquela cena para fazer algum ajuste, a rotina do grupo com relação à luz neste caso, após a checagem técnica dos equipamentos e do aquecimento físico dos intérpretes, compreende um treinamento em que ambos estimulam a escuta entre si. Como se fosse um trecho da peça, seguimos improvisando até o momento da entrada do público na sala. Dependendo da duração do espetáculo ou da quantidade de intérpretes em cena, operar a luz improvisando é um exercício exaustivo, pois a concentração exigida – o olhar constantemente atento a uma boa composição estética e procurando não perder algo importante que está acontecendo, às vezes fora do meu campo de visão – é bem desgastante.
A experiência com Aldeotas, que parecia muito difícil no início, foi se tornando prazerosa e menos distante, seja pela experiência que eu já tinha em shows de música, nos quais existe um espaço grande para o diálogo entre operação e cena, seja pelo meu histórico como bailarina, o que certamente me auxilia muito no entendimento das opções dos intérpretes. Atualmente, aprofundo essa técnica de operação, principalmente com a companhia Nova Dança 4, dirigida também pela Quito. Trata-se de um grupo de sete bailarinos afiadíssimos nessa linguagem de composição e há alguns anos estamos nos aperfeiçoando no diálogo entre luz e corpo em cena. De tal maneira que muitas pessoas do público retornam aos espetáculos da companhia mais de uma vez, pois não acreditam que ele é improvisado, que não seriam possíveis os acertos caso as cenas não fossem combinadas previamente. Mesmo assim, a construção da narrativa num espetáculo aberto é muito difícil. No caso da Nova Dança 4, é um agravante o fato de trabalharmos com imagens, quase sem texto. Mas os bailarinos, a luz e a música, que também é executada ao vivo, desenvolvem uma metodologia similar no sentido de se apropriar dessa narrativa. No caso dos bailarinos, dependendo do tema da obra, eles criam um repertório de movimentos que ajudam a caracterizar suas personagens, considerando forma e dinâmica, além dos treinamentos das técnicas de Ideokinesis, Contact Improvisation, Parkour, respiração Sokushin, linguagem de palhaço e jogos teatrais que norteiam a companhia, para que, dominando essas técnicas, seus corpos trabalhem livremente no momento do improviso, criando solos, duos e composições em grupo.

 

Os músicos formam em cena grupos de dois a cinco intérpretes tocando instrumentos variados; previamente, nos ensaios, preparam um repertório, uma seleção de temas que podem ser usados no momento do espetáculo, sendo que estes dialogam com o tema central da peça. Há ainda o uso das vozes para canções e dos efeitos gravados que são operados pelos próprios músicos em cena. Muitas vezes o silêncio pode ser a opção na composição do todo.

 

Na iluminação, a partir do estudo do tema proposto pela direção, crio um repertório de efeitos que compreendem desenho, incidência e cor. E todos esses fatores são o material bruto para o trabalho sutil de harmonização que se dá na operação destes espetáculos. A companhia Nova Dança 4 realizou recentemente uma trilogia que compreende os espetáculos Influência – inspirado na obra cinematográfica de Alfred Hitchcock, principalmente no filme O corpo que cai –, O beijo – inspirado em O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues – e Tráfego – inspirado na obra, também cinematográfica, de Jacques Tati.

 

Para sintetizar as ideias de luz no espetáculo Influência, assisti aos filmes de Hitchcock e revi aqueles que já conhecia, além de ler livros sobre os filmes por meio dos quais pude conhecer seus diretores de fotografia, técnicas de luz e equipamentos utilizados. Pesquisei essencialmente uma maneira de fazer uma luz preta e branca em cena (testes sobre figurinos e pele foram necessários) e a projeção de rasgos de luz através de janelas, pois percebi que esses elementos traduziam em cromatismo e temperamento o que nós buscávamos para a estética do espetáculo. Recortes de luz acentuados no ar flagravam um corpo caindo, sem revelar de onde vinha e para onde ia, já que utilizamos estruturas altas e colchões no solo para que esses voos se tornassem mágicos.

 

Um treinamento específico de posicionamento na luz foi feito com os bailarinos, já que recortes muito precisos demandam conhecimento de sua incidência, para que eles possam aproveitar conscientemente a luminosidade sobre seus corpos, muitas vezes revelando apenas pequenos detalhes, acentuando assim o suspense que pairava no ar. A operação de luz do Influência talvez tenha sido a mais desgastante vivida por mim até aqui. O uso das plataformas altas que podiam servir para uma cena nas alturas, um salto ou uma subida e descida de uma escada, me deixava com os olhos estatelados no palco e as mãos sobre quatro ou cinco opções de luz na mesa. Se pulassem, o recorte do corpo no ar, seguido do desaparecimento deste e da abertura de uma nova luz em algum ponto do palco que fosse a sequência perfeita da cena anterior, deveria acontecer em segundos…se ficassem na plataforma, qual seria o tempo de suspensão dessa imagem?… Quando acrescentar uma imagem paralela? E o pior de todos os dilemas: onde colocar o ponto final no espetáculo caso não houvesse uma imagem realmente impactante que não deixasse dúvida deste fim? Já que o espetáculo não tinha uma história a ser contada, em que momento já teríamos criado imagens suficientes para contextualizar o suspense? E, de certa maneira, esse fim estava nas minhas mãos, pois que símbolo é mais claro do que um black-out para desenhar o final de uma peça?

 

Já em O beijo, a questão da narrativa era mais clara, pois a obra de Nelson Rodrigues era nosso roteiro. Não que as cenas fossem acontecendo linearmente, mas sabíamos por onde deveríamos passar para que a história ficasse clara para o público. O elenco dividia-se nas personagens principais, havia duplos de cada uma delas e um repertório corporal desenhando as diferenças de cada uma. Nesse projeto de luz, fui aos poucos incorporando cores em tons pastéis, pois nossa referência visual principal era o filme homônimo de Bruno Barreto de 1980, no qual essas cores predominavam. Assim como o corpo das personagens as caracterizava, a cor de cada uma delas era um símbolo, bem como o cenário onde elas apareciam, composto apenas por gobos de janelas, ou seja, desenhos recortados numa chapa de metal que são ampliados e projetados quando colocados dentro de certos refletores. Então, a imagem das irmãs na sala da casa, independentemente do momento da história, era feita com os mesmos cor e desenho de gobos que as caracterizavam.

 

Recortes precisos de luz, em linhas retas e diagonais, representavam as ruas da cidade onde o atropelamento, fundamental no texto, acontecia. Esses recortes propiciavam movimentos em vários sentidos e a variação do uso deles na operação de luz criava algumas camadas de entendimento e possibilidades diferenciadas de leitura da cena, pois geravam sobreposições de personagens e espelhamentos.

 

O interessante nessa operação era ajudar os intérpretes na narrativa. Considerando que ela acontecia de forma aleatória, cabia à operação, além de compor os espaços e climas junto aos bailarinos, propor cenas que conduzissem ao entendimento da obra até seu desfecho, fazendo uma espécie de edição ao vivo, até o momento em que o palco era inundado por uma luz vermelha intensa feita com lâmpadas fluorescentes, que indicava o assassinato do protagonista e o final da peça.

 

Em Tráfego, a pesquisa primeira era buscar o humor no corpo dos bailarinos tendo como referência a obra cinematográfica de Jacques Tati. Já havíamos passado pelo suspense e pelo drama cotidiano, então era hora de os corpos encontrarem outras formas e dinâmicas. Paralelamente, o desenho de luz explodiu em cores saturadas e formas geométricas, compondo mosaicos e espaços bem definidos. Metade do ciclorama, cortado na horizontal, criava uma linha achatada e larga explorada com cores fortes, gerando uma silhueta bem desenhada dos corpos. Gobos de placas de trânsito apontavam caminhos e compunham um espaço mais urbano, luzes rasteiras recortadas no nível dos joelhos mostravam os pés se deslocando pelo espaço de forma frenética. E assim também era a operação, frenética e recortada, intercalando momentos suaves de poesia e respiração, mas sempre fragmentada. Em torno de sessenta canais de mesa eram usados nesse projeto, sendo que estes precisavam estar disponíveis de forma real; isso quer dizer que todos os efeitos deveriam estar à mão, com acesso direto. Algumas mesas trabalham com canais virtuais, ou seja, é preciso acessar a memória da mesa para acender o efeito desejado e isso demanda um tempo de que esse tipo de operação não dispõe. Essa grande quantidade de canais causou alguns erros: o olho está na cena, a mão, na mesa, você acredita que está no canal certo e sobe um canal errado. Errado até certo ponto, pois nesses espetáculos o erro pode ser uma proposta, e essa nova possibilidade pode ser um acerto, algo que pode surpreender a mim e ao outro e assim nos colocar num estado real de improvisação, de composição mútua, de escuta, de verdadeiro jogo de cena, na essência de seu propósito. E são também esses erros que mantêm o “estar vivo” na cena, já que existem muitas possibilidades para se contar uma mesma história, pois a obra.

 

É maior que cada um que a compõe e assim certos caminhos tortuosos se tornam atalhos. Os trabalhos com a Quito, nossas parcerias em espetáculos de dança, música e teatro, para adultos e crianças, mudaram minha percepção de espaço, e consequentemente, de luz. (Ou seria o contrário – a luz teria mudado minha percepção do espaço?)

 

A íntegra da dissertação “a construção do espaço através da luz: uma leitura da obra de dan Flavin” encon- tra-se disponível nas bibliotecas da Fauusp e no link: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16134/tde11012012-112335/pt-br.php

 

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