Guilherme Bonfanti | BR3

BR3

Em BR-3, o Teatro da Vertigem se aprofunda na descoberta da identidade e do caráter nacional iniciado com Apocalipse 1,11. A trajetória deste trabalho foi desenhada de forma teórico-prática englobando, desde a leitura – ou releitura – de grandes intérpretes do país, tais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro, Milton Santos, até uma pesquisa de campo que compreendeu um percurso geográfico por três diferentes “Brasis”: Brasilândia (bairro da periferia da cidade de São Paulo), Brasília (capital da nação, situada no centro do país) e Brasiléia (cidade no extremo do Acre, quase na fronteira com a Bolívia).

Para além da mera coincidência vocabular ou curiosidade etimológica – todas têm o mesmo radical “brasil” em sua composição – esses três pontos geográficos parecem propor um recorte ou uma certa visão sobre o país. Se traçarmos uma linha imaginária entre Brasilândia (SP), Brasília (DF), e Brasiléia (AC), teremos um arco parabólico direcionado para dentro do próprio país, e por isso mesmo, endógeno e umbilical. Tal parábola – que pode ser pensada tanto como curva, quanto como narração alegórica – se inicia no quase-litoral, passa pelo Planalto Central e se embrenha nos seringais da selva amazônica. Esse “percurso para dentro”, esse movimento centrípeto percorre desde uma quase-fronteira litorânea a uma fronteira continental (Brasil-Bolívia). Materializa uma cartografia tripartida: periferia-centro-periferia.

Daí tal investigação nos colocar diante dos paradoxos e dos limites do que é percebido como centro e periferia. Se a cidade de São Paulo é um dos principais pólos urbanos do país e uma das áreas mais populosas do mundo, ao mesmo tempo Brasilândia faz parte daquele conjunto de seus anônimos bairros periféricos. Se do ponto de vista cultural ela tem a melhor infra-estrutura do país, é, paradoxalmente, a campeã nacional em moradias precárias. Brasilândia/São Paulo é a um só tempo, centro e periferia.

Por outro lado se Brasília é a capital do Brasil, o centro do poder político nacional, por outro, é uma cidade ainda em busca de si própria, da construção de sua identidade, satélite de si mesma e de sua grandiloquente arquitetura. Utopia artificialmente forjada de um Brasil moderno em contraste com a realidade artesanalmente arraigada de um Brasil arcaico. Paradoxalmente, com a chegada do novo presidente ao poder, ela parece retomar a sua força utópica original, corporificando e revitalizando o concreto armado de sua arquitetura. Brasília é ao mesmo tempo o Palácio do Planalto e as suas cidades satélites (Taguatinga, Ceilândia, Núcleo Bandeirante e até mesmo, quem diria, Brasilândia). Porém, ainda uma outra contradição se coloca: a capital de um país periférico, não é, ela também, periférica?

A última das três áreas, Brasiléia, está situada nos confins do Acre – também ele um estado nos confins do Brasil – o que parece duplicar o conceito de periferia. A referida cidade é periferia do país, periferia da selva amazônica e fronteira do tráfico. Mas, ao mesmo tempo, é também uma das cidades mais populosas do Acre e importante área de extração da borracha. Brasiléia bem poderia simbolizar toda uma região que, por revolta de seus habitantes – brasileiros nativos – rouba, compra, apossa-se de um pedaço de terra de um outro país, criando um território independente. Não nos esqueçamos que, até o início do século XX, o Acre pertencia à Bolívia, e que só em 1962 foi elevado à categoria de estado. Curiosamente, pouco tempo depois da inauguração de Brasília (1960).

O Acre será a última grande área a ser incorporada ao território nacional. Inclusive, numa tentativa de recuperar seu território – cada vez mais invadido por brasileiros – a Bolívia chega a entregá-lo a um poderoso grupo norte-americano. Formou-se, então, o que se chamou de Bolivian Syndicate, em 1901, com o objetivo de desenvolver economicamente a região para, em seguida, reintegrá-la politicamente. Contudo, os brasileiros organizaram rebeliões armadas e dessa forma garantiram a sua permanência.

Além de ser o maior produtor de borracha do país, o Acre é também o estado símbolo da luta da preservação da floresta. Sobretudo após o assassinato de Chico Mendes, que se tornou um ídolo dos ambientalistas em todo o mundo. Brasiléia fica ao lado de Xapuri, terra natal desse importante líder seringueiro. Se quisermos amplificar ainda mais os contrastes e paradoxos das noções de periferia-centro, poderíamos apontar que nessa região até os índios se tornaram grandes exportadores. Por exemplo, a tribo dos Yawanawas vende urucum para as indústrias cosméticas dos Estados Unidos. Por sua vez, os seringueiros de Xapuri foram a primeira comunidade brasileira a explorar madeira segundo padrões ambientalmente corretos, tendo por isso, conquistado o “selo verde” (FSC), certificação florestal mais importante do mundo.

Três regiões (Sudeste/Centro-Oeste/Norte), três climas (tropical atlântico/tropical/equatorial), três paisagens (urbana/cerrado/floresta amazônica), mas todas elas construídas ou criadas a partir de um forte movimento de imigrantes, especialmente de nordestinos. Que traços haveria em comum entre acreanos, candangos e paulistanos? Que conexões, diálogos, confrontos e tensões poderiam ser encontrados e criados entre esses três lugares? À margem de um Brasil turístico, o percurso de pesquisa que realizamos foi rumo a um Brasil desconhecido e aparentemente “sem graça” (Brasilândia e Brasiléia). Mas também a um Brasil espetacularizado e, de certa forma, glamurizado (Brasília). Corte e província, império e colônia, capital e cidade/bairro satélite.

Tal desejo investigativo nos levou, portanto, a três eixos que deverão perpassar todo o espetáculo, nesse mapeamento e reflexão crítica sobre um certo caráter nacional:

– O espetacular (o carnaval, as belezas naturais, o futebol-arte, a arquitetura moderna, etc.) versus o não-espetacular (os confins do país, as terras de ninguém, a impunidade, a indigência, etc.);

– O arcaico (analfabetismo, precárias condições de saúde e moradia, a mentalidade coronelista e do favor) versus o moderno (tecnologias de ponta; projetos pioneiros – como o da distribuição gratuita do coquetel anti-Aids; etc.);

– O centro versus a periferia.

Se, 500 anos depois, já não podemos mais descobrir o Brasil, que ao menos possamos des-cobrir um certo Brasil. E que mais do que um mapeamento ou reconhecimento de um caráter, identidade ou país, esperamos que tal jornada nos sirva também como norte, como farol, como bússola para a criação – e re-criação – de identidades e territórios.

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