Nadia Moroz Luciani
Este artigo pretende introduzir a questão da performatividade da luz, supostamente estabelecida a partir da presença/ausência do seu agente, o criador/operador de luz e sua relação com o espectador (cri)ativo da cena contemporânea. Para tanto, considera as transformações ocorridas na função e significação da luz com o advento do teatro pós-dramático e as formas de recepção surgidas simultaneamente aos conceitos de teatralidade e performatividade na segunda metade do século XX. Em seguida são analisados alguns exemplos em que a luz é performada dentro e fora da cena para demonstrar como a iluminação, através de sua teatralidade, explora a potencialidade da recepção criativa para alcançar sua performatividade expressiva.
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Ao dar início aos estudos de mestrado sobre uma proposta de metodologia para a investigação e o ensino da Iluminação Cênica, a autora deparou-se com uma questão fundamental que até mesmo antecedia a temática da dissertação: a função de significação que a luz desempenha no espetáculo a partir do final do século XIX, considerando as transformações ocorridas neste sentido com o advento do teatro pós-dramático (LEHMANN, 2007) e as formas de recepção surgidas simultaneamente aos conceitos de teatralidade e performatividade estabelecidos pelas teorias elaboradas na segunda metade do século XX. Desde o final do século XIX, quando a luz adquiriu, através dos experimentos de Appia, Craig, Artaud e Jouvet, entre outros, forte caráter significativo e constitutivo do Teatro Total60 preconizado por Wagner (ROUBINE, 1998), sua função simbólica foi sendo acentuada até tornar-se parte indissociável da expressividade do espetáculo dramático. A luz ganhava status de signo e linguagem, cuja função narrativa igualava-se à do texto ou representação física dos atores ou do cenário. A força imagética da cena atinge patamares ainda inalcançados, considerando toda a história do teatro ocidental, e a encenação extrapola a ilusão e a representação da realidade para exprimir emoções, sentimentos, sensações e impressões do encenador, que a cria e faz materializar no palco.
A partir da modernidade, a própria característica narrativa do teatro é posta em xeque pelas experiências pós-dramáticas e a iluminação acompanha este limiar entre mostrar e ocultar, dizer e sugerir, determinar e desconstruir. As unidades de tempo e espaço são derrubadas e a narrativa fragmentada para dar lugar às sensações e interpretações livres possibilitadas pela encenação. O espectador assume a co-autoria da cena e ganha liberdade para ver, perceber e assimilar o que é encenado como lhe aprouver, pois é na sua interpretação e participação que a representação se realiza. A função da luz se transforma e assume novas características e encargos, a visibilidade da cena ganha espaço e a recepção se converte em parte constitutiva desta cena, incumbindo a luz de um papel primordial.
Em sua proposta de alfabetização visual, Donis A. Dondis defende que a visão é natural, mas a capacidade de criar e compreender mensagens visuais com eficácia só pode ser alcançada através do estudo (DONDIS, 2009. p.16). Ao qualificar a iluminação como linguagem e enquadrá-la em um sistema sígnico cuja comunicação que deve ser recebida e interpretada pelo espectador, fica estabelecida a necessidade de alfabetização visual como instrumento de controle da eficácia da comunicação e informação através da luz de um espetáculo. Outra abordagem de Dondis com forte relação com o fazer artístico da luz é relativa ao conteúdo e à forma, componentes básicos e irredutíveis de todo meio que se apresenta como elemento de conexão entre o artista (elaborador da mensagem) e o público (receptor). O significado, para ela, depende da resposta do espectador e tem relação com a sua rede de critérios subjetivos, através da qual ele modifica e interpreta a manifestação do artista. Para Dondis “o compositor visual deve compreender os complexos procedimentos através dos quais o organismo humano vê e percebe as coisas, e, graças a esse conhecimento, aprender a influenciar as respostas através das técnicas visuais” (DONDIS, op.cit. p.134), pois, segundo ela, o conteúdo e a forma constituem a manifestação e o mecanismo perceptivo é o meio para sua interpretação.
Benjamin, ao escrever sobre a reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1996), também afirma que a evolução das formas de expressão visual através do tempos alterou a forma de ver e de se relacionar com as imagens. Para Dondis, toda reprodução pressupõe uma reelaboração do significado, uma criação e disposição dos elementos visuais que compõem a mensagem. Ela alerta para a transformação ocorrida na arte e em seu significado ao longo da história e da evolução tecnológica, sem que houvesse, ao mesmo tempo, uma modificação equivalente na estética das artes, que manteve seu caráter subjetivo ao considerar a criação apenas como inspiração. Para ela, toda criação ou reprodução pressupõe, sempre, uma intensão, principalmente a partir dos adventos da fotografia e do cinema, que fizeram com que ver passasse a significar também compreender. Através do seu conceito de alfabetismo visual, ela considera que o fato de expandir a capacidade de ver acaba por expandir também a de criar ou compreender uma mensagem visual. Dondis explora as teorias desenvolvidas pela Gestalt para explicar que o significado não é inerente à obra, mas sofre influência do contexto e dos componentes físico e psicológico do observador, que o modifica a partir da sua recepção. (DONDIS, op.cit. p.131-132)
Por muito tempo acreditou-se que a luz estaria a serviço do espetáculo, do encenador e do “sentido” que a cena deveria ter e apresentar aos olhos do público. Mas é possível considerar, contemporaneamente, que esta cena não tenha que ter ou fazer sentido, o que leva a repensar a significação da luz no espetáculo pós-moderno. Cibele Forjaz afirma, em seu artigo sobre a linguagem da luz no teatro pós-dramático (FORJAZ, 2008. p.151-171), com base no conceito de pós-dramático de Lehman, que, num contexto em que a própria ideia de narrativa e de unidade da ação dramática é questionada, a função da luz se transforma. Com isso, ela corrobora não apenas com a compreensão da multiplicidade e infinidade de interpretações, mas também com a participação do espectador na condição de sujeito, de co-autor da obra, entendendo a realidade polifônica da luz e da manifestação teatral, em que mais vale a sensação provocada que o sentido previamente atribuído.
Neste viés do sentido geral da cena, se alcança outra reflexão bastante relevante, que nela interfere de maneira crucial: a da sua veracidade e credibilidade frente à recepção e absorção pelo espectador. De Marinis alerta para o que chama de “competência teatral” e explica que ela deva ser “entendida como o conjunto de tudo aquilo […] que coloca o expectador em condições de compreender […] uma representação teatral.” (MASSA, 2010. p.32) Assumindo que o teatro seja considerado um meio de comunicação e transmissão de sentido, visando uma plateia e seu entendimento por parte dela (MASSA, 2010. p.8), o que faz, então, com que a atinja de forma mais ou menos “eficaz”? Esta questão leva a confrontar a função de significação da luz e os novos paradigmas de recepção e experiência do espectador como construtor desta cena. Com isso, a luz demonstra seu potencial para uma nova participação na construção e investigação da cena pós- dramática: sua função poética.
A denominação de função poética da luz encontra eco, entre outras, nas afirmações de Zumthor (2007), que declara a influência direta da postura e forma de recepção do leitor (receptor) sobre as percepções e prazeres frente ao poético, e Féral (2008), que afirma que a teatralidade é o resultado do trabalho poético do artista, um jogo de ilusões e aparências, cuja linguagem valoriza mais a ação do que a representação. Para ela, performar é também entrar no jogo, engajar-se, e, citando Schechner, ser, fazer e mostrar (FÉRAL, 2008. p.200), ações reconhecidas pelo artista no seu processo de criação que evocam, antes mesmo que a noção de teatralidade, a de performatividade. Para Féral:
Uma das principais características deste teatro [performativo] é que ele coloca em jogo o processo sendo feito, processo esse que tem maior importância que a produção final. Mesmo que essa seja meticulosamente programada e ritmada, assim como na performance, o desenrolar da ação e a experiência que ela traz por parte do espectador são bem mais importantes do que o resultado final obtido. (FÉRAL, 2008. p.209)
Neste sentido, os estudos sobre a recepção de Massa levam ao entendimento de que, neste processo, mais vale se questionar sobre o que a obra provoca no receptor, o que acontece com ele, do que um eventual sentido prévio elaborado pelo artista (MASSA, Clóvis. op.cit. p.30). Segundo Massa, De Marinis considera a experiência como subprocesso dos atos receptivos, a saber: percepção, interpretação, reações cognitivas e emotivas, avaliação, memorização e evocação (Ibid. p.33). Voltando a Zumthor, é possível traçar um paralelo entre o teatro performativo definido por Féral e a prática discursiva definida por ele como “poética” ao afirmar que a performance é o único modo vivo de comunicação poética. Para ele, o que o poético tem de profundo encontra-se na capacidade de ser percebido e de gerar seus efeitos face à presença ativa de um corpo, um sujeito em sua plenitude de existir no espaço e no tempo, que ouve, vê, respira e sente odores e texturas. Assim, a qualidade poética da expressão de um texto [ou ação] está em sua capacidade de provocar sentimentos, produzir efeitos, proporcionar prazer (ZUMTHOR, op. cit. p.35). Porque, então, não dizer o mesmo da qualidade poética da luz, de qualquer outra linguagem do espetáculo ou do próprio espetáculo que, desde que afetados, influenciados e alterados pela forma e contexto de recepção e percepção a que seu público é exposto, produzem um efeito sensorial e atingem também resultados informativos ou comunicativos?
Marilena Chauí apresenta, em seu artigo Merleau-Ponty: a obra fecunda, uma interessante abordagem sobre o tema da recepção quando expõe o conceito de leitura criativa, que se dá quando “…não vejo letras ou sinais sobre uma página, mas participo de uma aventura de significações em que o escritor me invade arrastando-me do instituído para o instituinte, fazendo- me criador.” (CHAUÍ, 2011) Carmen Valdez também propõe uma abordagem semelhante com o seu conceito de espectador “bricoleur da cena” ao associar os conceitos de bricoleur, de Lévi- Strauss; pós-dramático, de Lehmann; obra aberta, de Umberto Eco e, finalmente, a semiótica da recepção teatral de De Marinis (VALDEZ, 2009). Nesse mesmo sentido, Roman Ingarden reconhece, segundo Massa, a atividade co-criativa do espectador ao desenvolver sua teoria da concretização a partir dos estudos sobre a recepção literária para investigar o processo de recepção do espetáculo teatral (MASSA, op.cit. p.19). A cena, assim, é aberta, não havendo um significado fechado que a anteceda ou mesmo durante a emissão. É na recepção que o espectador bricoleur define, para si, individualmente, um sentido próprio para o que acaba de experenciar.
Paralelamente, uma ampliação no âmbito e abordagem da atividade teatral enquanto ação cultural e social levam, segundo Mostaço, ao abandono do conceito tradicional de teatro textocêntrico e encenado pela constatação de um novo teatro (MOSTAÇO, 2009. p.24-5, nota). A compreensão deste novo teatro considera não só o momento da ação e o contexto em que se insere, mas sobretudo a realidade psicossocial e emocional dos envolvidos: agentes e espectadores, ambos partícipes. Schechner se serve dos estudos do antropólogo Victor Turner para relacionar a atividade teatral e performática às práticas rituais e aos jogos, definindo graus de personificação do ato performático em sua relação com a realidade cotidiana (FÉRAL, 2009. p.60). Considerando aspectos delineados a partir dos Performances Studies de Schechner é possível encontrar refúgio para uma nova compreensão da iluminação cênica, que deixa de ser informativa ou simbólica para justificar, no fazer operante, sua expressão e manifestação como ato performativo. Avançando um pouco mais, a iluminação também pode ser considerada, desta forma, como ato perlocutório, dado seu desejo de produzir efeito sobre o interlocutor, neste caso o espectador teatral, durante o ato de recepção.
Enquanto que para Austin as enunciações performativas só podem acontecer na vida real, para Derrida o performativo está em qualquer processo de escritura, pois a concretização da enunciação performativa é aleatória, instável, ambígua e jamais unívoca, cujo risco e possibilidade de fracasso não a invalidam na ficção (FÉRAL, op.cit. 2009. p.72). Para Schechner, o performativo entendido como virtual simplesmente “acontece” (ibidem.), o que leva ao entendimento de que a performatividade pode abranger atos fictícios inseridos numa realidade de experiência real. Este seria o caráter primordial de uma luz considerada como performativa, uma iluminação que “acontece” em consonância com a ação cênica, ambos dados à percepção e experiência do espectador. Féral complementa, ainda, que é preciso, além da disponibilidade para a percepção, que haja um saber que complemente esta experiência (ZUMTHOR, op.cit. p.41-2). A teatralidade surge, segundo ela, deste saber do espectador, de que ele seja informado da intenção do teatro em sua direção. Este saber modifica seu olhar forçando-o a ver o espetacular, transformando em ficção o que poderia parecer realidade ou acontecimento, semiotizando o espaço em uma intensão instituída pelo ato performático (Ibid. p.41), que deve ser compartilhada entre aquele que contempla e aquele que desempenha. A teatralidade é que permite, então, a percepção do fazer performático.
Uma possível performatividade da luz se realizaria, assim, na teatralidade com que ela se manifesta em cena, executada pelo criador/operador que a “performa” segundo normativas pré- estabelecidas ou improvisações que acompanham a representação em curso e são dadas à contemplação, na intensão de provocar sensações e reações frente ao olhar que a interpreta e lhe atribui sentido. Este olhar, que Mostaço define como experiência singular e elementar de um indivíduo, vetorizada pelas tensões antagônicas e disjuntivas do eu e do outro (MOSTAÇO, op.cit, 2009. p.39), é a base da teatralidade e performatividade encontradas na realização teatral pelo seu caráter dramático, representacional e inteiramente performático.
[…] a teatralidade não está ‘na coisa’, mas no olhar do espectador; ela é um produto mental propiciado pelas percepções e, para emergir, não depende de um palco, atores ou cenografia, mas tão somente de uma operação de linguagem [neste caso, a iluminação] intermediando um sujeito e um objeto, para ficarmos na distinção clássica e que, não fortuitamente, remete também à metáfora objetual do próprio espetáculo minimal: algo a ser visto, alguém para ver . (ibidem.)
Josette Féral argumenta, com base nos estudos de Schechner, que a performatividade não é um fim em si mesma, uma realidade concreta, acabada, mas que apresenta um potencial performativo (FÉRAL, op.cit.2009. p.65-6) na recepção ativa e participativa do espectador, considerado como co-criador da cena. Schechner afirma que “não há limites ‘teoréticos’ [theoretical limits] para a performatividade” e que mesmo ações banais podem ser consideradas performance, através da imposição e realização de tais ações “como performance” […by framing these ordinary action “as performance”] (FÉRAL, op.cit.2009. p.66), ou seja, da consciência de quem as realiza [criador/operador de luz] e da presença de quem as observa [espectador]. Ela colabora ainda para a compreensão da maneira como as técnicas e estratégias do design podem conferir perfomatividade à iluminação. Ao afirmar que a performatividade é a construção e reconstrução conscientes da realidade, destacando o reconhecimento intelectual das etapas desta construção, ela permite identificar, então, uma analogia desta ação performativa com o processo do design, tanto na criação e elaboração do projeto da iluminação entendida como linguagem, quanto no potencial de execução performativa durante o espetáculo. Da mesma forma, como nem toda ação dramática, cênica ou teatral pode ser considerada performance, nem toda luz será performativa, mas o importante é reconhecer, com estes argumentos, seu potencial performativo. Os conceitos de reprodutibilidade de Benjamin (1996) e de simulação de Baudrillard (1991) ajudam a compreender como a simultaneidade entre original e cópia faz com que o significado possa ser variável e absoluto, tornando cada performance única e plural em sua capacidade expressiva e poética. A iluminação performativa, ao acompanhar e corresponder esteticamente à representação, revela seu caráter variável, ajustado e original a cada reprodução, mesmo que pré- concebida e ensaiada (repetida). Teixeira Coelho afirma, na apresentação do livro Sobre Performatividade que “Embora uma partitura, um guia, um roteiro possa preexistir a este processo [obra de cultura ‘orquestral’ de reunião e interação entre pessoas], o resultado, a que se dá o nome de obra de cultura, só virá a existir graças à interação performática dos participantes do conjunto.” (MOSTAÇO, 2009. p.8) Para Mostaço, no núcleo da performatividade está o conceito de simulação, ficção ou experimento, simultâneos ao agir em tempo real, na presença do outro (Ibid. p.35). A ênfase está tanto sobre o modo como as ações são realizadas quanto recebidas, assimiladas e transformadas pela experiência.
Os conceitos intrínsecos da performatividade – ambiguidade, fluxo e instabilidade – são, assim, transpostos para a execução da luz durante o ato cênico. O jogo do desdobramento de Schechner permite compreender esta ação cênica performativa. Carlson cita, a este respeito, a auto-reflexibilidade e Terrin fala do estranhamento (consciência e reflexão), comparando-a ao efeito brechtiniano de distanciamento como elemento fundante da performance. Este fenômeno nem sempre ocorre na vida real, mas é imperativo na ficção, onde sempre há a participação de um outro que contempla ou observa. A teatralidade, que está na ordem da percepção, e a performatividade, na ordem do fazer, aliam-se na reprodução operacional do projeto de iluminação do espetáculo que permite a criação de um universo localizado na transição entre o real e o ficcional, envolvendo a entrega, o risco e a intensidade, esta última citada por Terrin como uma das conotações essenciais da performance, juntamente com o estranhamento e a interação (TERRIN, 2004. p.353-54). A dualidade do mundo (afeto e dor, guerra e solidariedade, violência e virtuosidade) é apontada por Mostaço (op.cit.2009. p.36) como correspondente à dualidade do ser e o espetáculo (teatral, performático) o faz confrontar esta realidade de forma sensitiva e pungente. Os limites entre o real e o ficcional estão cada vez mais difusos, assim como a separação entre palco e plateia, cena e público, performer e observador. A experiência compartilhada revela semelhanças, ressalta diferenças, mas insere ambos num mesmo universo de ficção em que a realidade se torna presente na ação.
Uma iluminação performativa apresenta, então, como característica essencial, a intensão de tornar real o que seria antes ficcional, gerar consciência ao fazer e ao compartilhar a ação cênica, dando a perceber a realidade do que é executado ou “performado”. Um recurso muito utilizado para alcançar este tipo de resultado é a operação ou manipulação dos recursos de iluminação de maneira visível ao público. Esta atuação permite o distanciamento e o estranhamento que denotam esta consciência do fazer teatral ao fazer notar pelo público a presença do agente que a executa e a imprevisibilidade e risco inerentes à esta ação. Quando um operador de luz opera uma mesa ou um ator ou performer manipula uma fonte luminosa em cena, sua atuação torna-se concreta e real, desnudando o truque e demonstrando a face real da cena: um indivíduo em situação real, presencial e intencional. O público adquire, forçosamente, consciência da existência deste manipulador, eliminando qualquer possibilidade ilusionista ou mágica no acontecimento da iluminação do ambiente e da cena. Não há resquício de naturalidade ou previsibilidade, o aqui/agora da cena transpassa o nível ficcional para adentrar o momento real compartilhado por performers e espectadores, que podem também atuar como agentes desta ação performática: uma ator entrega um refletor para um espectador selecionado aleatoriamente e ele não só escolhe o que verá, como também enfatiza a sua escolha para outros espectadores próximos, tornando-se partícipe da construção da cena. É possível ainda haver a interação entre criador/operador de luz e atores/cantores/dançarinos pela interferência mútua sobre a atuação de ambos através da interação entre a manipulação dos recursos luminosos e reações visuais ou orais estabelecidas entre eles.
Esta atuação performática do criador/operador da luz visível ao público pode ser ilustrada com alguns exemplos de trabalhos contemporâneos brasileiros, cuja escolha por este tipo de manipulação e pela presença física do agente da luz em cena segue motivações poéticas e princípios estéticos variados, mas sempre ligados à forma de expressão e interação com a cena e com o público. O primeiro exemplo é o espetáculo Suite 161, da Companhia Brasileira de Teatro, em que a atriz e iluminadora Nadja Naira, atuava e executava a iluminação do espetáculo simultaneamente no palco, às vistas do público. Um dos motivos que levaram à esta opção de operação aparente da luz foi o de reforçar a crença da companhia de que não é preciso esconder do público o teatro e seus truques para que, mesmo assim, ele se envolva, prontifique-se a ouvir a história contada e se comova. Para eles, é habitual o uso recursos desta natureza: relação direta com o público, luz da plateia acesa ou indicações de estado (rubricas) na fala dos atores. Segundo a iluminadora:
Esses recursos sempre nos fazem lembrar que estamos lá, naquela sala, naquela hora, naquele dia. Nos ajudam a lembrar do tempo real e a considerá-lo parte significativa da ação teatral. Quando tenho que mudar uma luz em cena, preciso, por um instante, me concentrar em algo muito concreto, que me obriga a estar ali muito ativa, esperta e não apenas envolvida com o personagem e a sua situação. Essa ação de sair e entrar da situação “teatral” (por exemplo em Suíte – a inquisição ao Rani [ator Ranieri Gonzales, membro do elenco da peça]), é como colocar e tirar uma máscara. Supostamente, como eu mesma, a atriz/iluminadora, posso comentar algo com o público, trocar um olhar, um gesto, posso ainda resolver questões da cena, objetos que ficaram em lugares errados, lâmpadas que queimam, mesa que desconecta e trava, etc. etc. … Tudo fica muito vivo!!”
Ela explica que o principal motivo para a operação da luz deste espetáculo acontecer no palco foi o fato de que também atuava, mas acrescenta que se não fosse completamente visível, mas “meio escondido”, não configuraria uma opção estética e sim, um “arranjo” para algo “de que não se tem certeza de querer dizer”. Além da luz, havia também uma atriz que tocava um teclado, um que “operava” um pequeno aparelho de som e uma outra atriz que fazia uso de uma cafeteira elétrica em cena. Ela destaca ainda o fato de muitas pessoas nem notarem que a execução da luz acontecia no palco, dada a simbiose alcançada entre esta ação “real” e a ação “dramática” na constituição do espaço da cena.
Nadja explica que neste tipo de teatro praticado pela companhia, em que tudo se dá coletivamente, mas que mesmo assim comporta uma hierarquia, ou seja, a existência de um diretor, a decisão por estas propostas estéticas ou poéticas é principalmente dele, mas os atores e técnicos fazem suas propostas, opções, apresentam soluções e discutem contrapontos entre conceito/ideia e execução. Há uma integração dominante, na qual todos são parte do mesmo conjunto. Ela complementa afirmando que sem a operação da luz em cena, certamente o espetáculo seria outro, não aquele, pois esta opção se tornou parte constituinte e característica daquele espetáculo específico e único. Ela ainda acrescenta, sobre seu trabalho, “Para nós tudo é texto63. Alguém entra com as palavras, nós entramos com nossos corpos por onde a palavra passa e a partir daí colocamos as palavras em relação com o espaço, os objetos, a luz, o som e principalmente com o público, que para nós não ‘espera’ mas ‘funda’ esta ação.” Esta importância dada ao público, cuja atuação como “fundador” da ação permite sua interação com a cena interpretando-a e modificando-a a partir da percepção que tem dela, corrobora com o conceito de performatividade da luz apresentado neste estudo e reforça o conceito de espectador “bricoleur da cena” apresentado anteriormente.
Os dois próximos exemplos são criações do iluminador Paulo Cesar Medeiros, o primeiro para o espetáculo Corte Seco, da diretora Christiane Jatahy e o segundo para a peça teatral O Livro, da mesma diretora com o ator Eduardo Moscovis, que, além de atuar, também executa a iluminação do espetáculo em cena. No primeiro caso, o iluminador explica, a respeito da opção pela operação da luz, bem como do som e dos vídeos, em cena foi, segundo, da direção do espetáculo, ao encargo de Jatahy: “o espetáculo é formado por diversas cenas curtas, mas nunca sabemos a ordem em que elas vão aparecer. A diretora vai dizendo o número das cenas e nós todos de som, luz, vídeo e atores, re-arrumamos o espetáculo para aquela cena pedida.” 67 Para isso, o palco foi arranjado colocando-se, na lateral, uma mesa em que todos os técnicos e seus respectivos aparelhos, bem como a própria diretora do espetáculo, ficam em cena. A ideia, segundo Medeiros, foi a de demonstrar que as interferências ou o desenrolar do espetáculo em cada apresentação podem e devem ser modificados por todos, inclusive pelo próprio público. Por isso a necessidade de que tudo fosse feito ao vivo, improvisado, até certo ponto, e visível. Medeiros retoma os primórdios do teatro como ação sociocultural ao descrever esta ação cênica como uma atitude artística que remete, aos que tem ação sobre ela, a fazer parte de um dos últimos encontros ritualísticos e presenciais do mundo: o teatro, explicando ainda que o teatro é, antes de tudo, uma força viva do presente, da presença e da atenção que gera e de que necessita. Esta reflexão acerca do “fazer” confere à atuação, seja do elenco, da equipe técnica, do espectador ou da própria diretora, também atuante durante a apresentação, o caráter performático do espetáculo como um todo e, particularmente, de cada uma das ações executadas, dentre elas a iluminação. A performatividade da luz está presente tanto na consciência do ato cênico de executar a luz quanto na imprevisibilidade e risco impressos na improvisação das cenas e da iluminação que incidirá sobre elas, dando-lhes claridade e sentido, conforme as demandas e necessidades de cada uma, a cada vez. Os recursos e efeitos podem estar previamente montados e instalados, mas a escolha de qual usar e de como proceder a cada instante do espetáculo ou executar cada ação ou movimento de luz cabe ao operador/criador no momento em que acontece a cena, conferindo-lhe uma performatividade análoga à do ator, reagindo a tudo que o cerca e conduzindo, a partir desse todo, sua atuação cênica.
No último exemplo, O Livro, Medeiros explica que a operação da luz em cena pelo ator Eduardo Moscovis representava uma forma de jogar com a ideia de superposição ator/personagem. Segundo ele “O personagem ia perdendo a visão durante o espetáculo e o ator/narrador ia conduzindo a história e controlando a luz/luminosidade ao mesmo tempo. Nesse caso a luz cênica estava diretamente relacionada com a ideia de capacidade de enxergar, então era importante que o narrador tivesse e demonstrasse esse controle sobre os instrumentos de luz.” Medeiros esclarece que ela a peça é baseada em um texto [de Newton Moreno] que conta a história de um personagem que vai cegando a medida que lê um livro, numa “metáfora sobre heranças familiares [o personagem toma conhecimento da cegueira que o acometerá por um bilhete do pai explicando o fato do mesmo ter acontecido com seus ancestrais], supostos destinos aos quais parecemos estar presos e nossa capacidade de fugir deles.” Isso é o que explica, então, a decisão sobre a execução da luz às vistas do público, que poderia perceber, com isso, o “controle” do ator/narrador sobre o acender ou apagar as luzes, a possibilidade de clarear ou escurecer a cena, ampliando ou diminuindo “voluntariamente” sua capacidade de ver, ou seja, exercendo a “opção” entre enxergar ou não. Para Medeiros a peça fala sobre enxergar e ver, estar diante e estar presente. Fica fácil compreender este “estar presente” apontado pelo iluminador como a capacidade de intervir, de agir sobre a ação, de estar consciente do ato cênico, tanto na interpretação do personagem quanto na atuação como narrador ou na ação como manipulador dos efeitos luminosos. Mesmo que se considere uma direção de cena ou a criação prévia do projeto de iluminação, a performatividade está no poder de decisão delegado a este agente performativo que encontra-se presente em cena e tem o poder de agir, conscientemente, sobre ela, se expõe e apresenta, mais do que representa, um determinado papel. São suas as angústias compartilhadas com o personagem, bem como com o espectador, que por outro lado traz também as suas, ou com o indivíduo que decide e age sobre as condições luminosas do ambiente, seja ele mesmo (performer com acúmulo de funções) ou não (operador de luz), seja em cena (palco, plateia ou outro lugar visível ao público) ou fora dela (cabine de luz).
Considera-se aqui o conceito de presença na visão heidggeriana, que está mais associado à noção de existência do ser do que à presença corpórea de objetos. Ao significar a existência do homem, seu espírito e consciência, ele pode se manifestar mesmo com a ausência física, em que o indivíduo se faz presente através do existir de seu pensamento ou ação. O iluminador pode se fazer presente, então, através de sua atuação consciente e pela presença da luz que impõe à cena, tornando plausível concluir que a atuação visível não seja imprescindível para provocar o estranhamento, o distanciamento e a intensidade necessários para que uma iluminação possa ser considerada performática. A performatividade da luz pode ser encontrada também, por consequencia, na realização de um projeto de iluminação não ilusionista, na sua interação com a cena, sua imprevisibilidade, a maneira de atingir, dispor, sensibilizar e transformar o espectador durante a atuação e, finalmente, na definição de uma linguagem performativa, que pode prescindir da presença física do operador, mas não da sua atuação performática em tempo real, no espaço ficcional da cena e na expressão poética dos recursos visuais propostos por um tipo de iluminação que poderia ser chamada, assim, de pós-dramática e performativa.
É, ainda, através da teatralidade desta luz posta em cena que a iluminação manifesta sua potencial performatividade face ao público, na recepção da imagem visual a que é submetido o espectador. Zumthor defende uma audição performativa do texto literário através da oralidade poética (ZUMTHOR, op.cit. p.36-42) citando Josette Féral:
Você entra numa sala de teatro onde uma disposição cenográfica espera visivelmente o começo de uma representação. O ator está ausente. A peca não começou. Pode-se dizer que aí há teatralidade? Uma semiotização do espaço teve lugar, o que faz com que o espectador perceba a teatralização da cena e a teatralidade do lugar. Uma primeira conclusão se impõe. A presença do ator não foi necessária para registrar a teatralidade. Quanto ao espaço, ele nos aparece como portador de teatralidade porque o sujeito aí percebeu relações, uma encenação. (ZUMTHOR, op.cit. p.40)
É possível concluir, a partir da afirmação de Féral, que a teatralidade seja conformada pelo ato performático compartilhado entre agente e receptor, ou seja, no caso, entre o operador de luz (performer) com os efeitos perlocutórios que executa e o espectador (observador) que os recebe, numa ação poética sensorial e perceptiva que o leva à assimilação simultânea da informação visual que o atinge. A teatralidade revela, assim, a percepção do fazer performático, da ação simultânea a recepção, da criação simultânea à ação.
A este respeito, cabe ainda destacar um prática profissional percebida em processos criativos recentes da autora deste artigo68 e cada vez mais frequente nas artes cênicas que podem ser assimiladas como performáticas. Apesar da existência de um plano prévio, de ensaios e repetições, de “acordos” e roteiros preexistentes, a ação cênica permite, atualmente, improvisos ou interferências da audiência que confere à execução do projeto de iluminação uma imprevisibilidade e risco que caracterizam, a partir de tudo o que foi exposto anteriormente, o caráter altamente performativo da criação e execução, muitas vezes simultâneas, da iluminação de um espetáculo. Aliado a isso há ainda a possibilidade de intervenções mediáticas também cada vez mais frequentes, que descaracterizam o espetáculo encenado e pré-configurado realista, ilusionista ou naturalista. O uso de imagens captadas no momento da ação, a interferência narrativa do público e a manipulação de instrumentos luminosos pelos performers em cena ou improvisadamente podem subverter e corromper completamente um plano de luz pré- estabelecido. Artefatos como projetores de imagem, refletores portáteis, lanternas, retroprojetores e outros recursos luminosos manipuláveis se fazem cada vez mais frequentes na cena contemporânea e conferem à iluminação seu caráter performativo, instável e, por vezes, imprevisível.
Estes estudos e considerações não configuram mais do que sementes, provocações a respeito de uma possível performatividade da luz, verificável em experiências profissionais práticas da autora em confronto com as teses e estímulos encontrados na preparação para o mestrado, nos felizes encontros com novos professores, pesquisadores e autores que, nesta trajetória, lhe apresentaram novos caminhos. Muito há ainda a ser descoberto, entendido e desbravado antes que sua proposta esteja plenamente madura, mas apontar a potencialidade perfomativa da luz na ação do criador/operador que, em consonância com a narratividade da cena e dispondo de recursos próprios à sua linguagem, constrói um discurso cênico de ambientação, caracterização e composição do espaço e da imagem com traços performativos, numa perspectiva estética, ou antes, poética, ajuda a vislumbrar um novo modo de fazer, de expressar o futuro das artes dramáticas e narrativas, cuja revelação encontra-se na experiência que proporciona e sensações que provoca neste espectador co-criador, a partir de processos criativos múltiplos e participativos, cuja experiência, acima da demonstração ou exposição, encontra na vivência sua maior expressão e realização.
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