Guilherme Bonfanti | Jathyles Miranda

Jathyles Miranda

Iluminador cênico

Meu contato com iluminação cênica ocorreu na adolescência, na escola do meu bairro.

 

Sou amigo de infância de vários artistas do bairro, como os irmãos Amâncio (maestro Gil Amâncio) e maestro Forró (Orquestra Popular da Bomba do Hemetério).

 

Nunca pensei em ser ator, meu interesse estava nos bastidores. Descobri esse interesse motivado por visitas que fazíamos aos teatros do Recife. Como todo movimento artístico de subúrbio, o dinheiro era escasso e por isso construíamos nossos  equipamentos  de  maneira  improvisada,  tendo  sucata  como  matéria-­‐prima. Éramos obrigados a ser inventivos…

 

O  teatro/escola  me  ensinou  técnicas  que  trago  até  hoje.  Fazer-­‐me  valer  de  fontes alternativas de luz, misturando esta tecnologia barata com equipamentos bem mais sofisticados, apontou um caminho que hoje considero minha marca, meu diferencial.

 

Fui arrebatado pela arte! Deixei de estudar topografia e me joguei de vez na Iluminação cênica. Numa das visitas aos teatros conheci uma iluminadora (Triana Cavalcanti), que me deu uma grande oportunidade: um estágio prático no Teatro do Parque, em Recife. Naquele momento os teatros da UFPE, Santa Isabel e Guararapes estavam todos fechados para restauração. Por isso toda produção nacional e internacional de dança, teatro, shows e musicais que passavam por Recife se apresentavam no Teatro do Parque.

 

Sorte a minha! De tanto ter contato com tais produções – acompanhando, montando e às vezes operando – passei a conhecer a fundo os detalhes de cada expressão artística e suas peculiaridades, de modo que passei a trabalhar com esses universos encontrando harmonia entre eles.

 

Do Teatro do Parque para as locadoras de equipamento de iluminação a mudança  foi rápida. E das locadoras para a criação de plantas para espetáculos de dança, teatro e bandas foi um enorme passo.

 

Hoje me considero autodidata, até porque quando fiz o primeiro curso de iluminação cênica com o saudoso Iluminador Vinícius Feio eu já trabalhava na área há 5 anos!

 

Hoje passei a trabalhar com a Rede Globo Nordeste, retomando um contato com o vídeo e TV que teve início no meio dos anos 1990. Na Rede Globo eu crio e opero projetos de iluminação para gravações de DVDs dos artista que eles apoiam e para programas musicais.

 

Em relação ao meu começo, me sinto privilegiado por vir de onde venho. Percebo que aquele grupo de teatro de escola não era só diversão.

 

Hoje digo que “arrumei essa profissão brincando”!

 

Jathyles Miranda é light designer cênico, inventor de luminárias alternativas e traquitanas para cenário, além de ser sócio-­fundador do bloco Segura O Case e sócio da Casa da Luz, em Recife.

 

 

Como fui parar no Cordel do Fogo Encantado

Era janeiro de 1999. Eu era iluminador da Banda Mundo Livre S/A, do vocalista Fred 04. Na época morávamos em São Paulo, mas estávamos em Recife para realizarmos shows pelo Nordeste. A garota com quem eu namorava era atriz e amiga da namorada do empresário do mundo Livre, o Gutie. Por isso combinei com elas de levar o Gutie pra ver uma peça delas. Só que eu confundi o teatro e, chegando no lugar errado, estava tendo uma peça do Sertão de Pernambuco, cidade chamada Arcoverde. O nome era “Cordel do fogo encantado”, e estava sendo apresentada no festival Todos Verão Teatro. Mesmo descobrindo que estávamos no Teatro errado, ficamos ali encantados com a montagem.

 

Naquele ano o festival Recbeat Carnaval (que também tem o Gutie como idealizador e diretor geral) estava saindo do centro Luis Freire em Olinda (capacidade para 1000 pessoas) para a rua da moeda no Recife Antigo (pra um público de até 20 mil pessoas). Ele viu que o “Cordel” caberia no Recbeat.

 

Começou uma campanha para convencer o vocalista Lirinha a topar o desafio de tocar no Recbeat, mas o Lira não queria e seu argumento era legítimo: “Criei um espetáculo para 500 pessoas, não para 20 mil”. Lembro que antes do Carnaval fomos a Canes com o Mundo Livre e lembro bem do Gutie ligando de um orelhão pra Arcoverde num frio de -­ 4º.

 

Finalmente o Lirinha fez uma adequação nos textos da peça e topou. Essa adequação deu início ao que se tornou a banda Cordel do Fogo Encantado.

 

Como eu já era iluminador do festival Recbeat e tinha uma trajetória que teve início no teatro, eles acharam que eu possuía o perfil para trabalhar como criador e operador das luzes deles. Pra mim foi um presente! Eu já era iluminador do Mundo Livre e pegar o Cordel seria cômodo.

 

Naquele ano, eles foram o destaque do festival! A imprensa em cima, e eles não tinham sequer uma fita demo! Era outra lógica, eles haviam se tornado banda.

 

O Gutie lançou o convite pra representá-­‐los como empresário. Eles, então, fizeram uma adequação na formação, pois alguns não quiseram trocar o sertão pelo litoral. Nessa mudança entraram dois percussionistas do Recife.

 

E eu criei, em parceria com eles, o primeiro desenho de luz com aspectos de show. Pra mim foi um presente, pois comecei a inserir elementos da minha formação no teatro escola, com adequações ao mercado de luz profissional.

 

Fizemos uma turnê nacional abrindo os shows do Mundo Livre, eu era iluminador das duas bandas.

 

A revista Trip lançou um CD contendo uma música inédita da banda Chico Science e Nação Zumbi e mais umas dez faixas do Cordel do Fogo Encantado. O resultado disso foi uma popularização do Cordel. Essa ação estimulou outra turnê, então o Cordel viajou sem um CD oficial, o que caracteriza outra coisa inusitada na trajetória deles.

 

E foi assim que comecei minha história no Cordel, onde passei 11 anos e levei os experimentos artísticos ao extremo! Uma grata experiência!

 

Processo de criação do Cordel do Fogo Encantado

Ao contrário de outras bandas, o Cordel teve início no teatro. Por ser de teatro e ter uma forte influência da literatura, a palavra era um ponto de partida para minha criação. A palavra era o tema, do tema eu escolhia a técnica que era aplicada com meu estilo. Muita coisa era discutida e decidida em reuniões com os próprios músicos.

 

Foi no Cordel que exercitei meu estilo, meu olhar, minha opinião.

 

Primeira turnê:

Como o CD da Trip deixou o Brasil curioso com relação àquele som tão diferente. Assim como era a proposta da diversidade estética do movimento mangue levantada alguns anos antes por Mundo livre S/A e Chico Science e Nação Zumbi, chegou a hora de mostrar ao Brasil o que o Cordel tinha de melhor: o show! O Cordel em cena era explosivo! Só que naquele momento haviam problemas financeiros que tornavam inviáveis carregar nossos sonhos pelo Brasil. O excesso de bagagem era um deles.

 

E foi com soluções baratas e criativas que passamos a driblar as dificuldades, nosso cenário era composto por figuras rupestres que eram referências ao vale do catimbau próximo a Arcoverde. Esses painéis eram de juta e eu os iluminava com refletores P.A.R. 64 e também passei a pesquisar coisas pelas quais eu já me interessava, como fontes alternativas de luzes e de energia. Então led (o que não era tão popular naquela época pois não havia a invasão chinesa), micro lâmpadas, lâmpadas de geladeira, lâmpadas piloto, baterias seladas, bateria de moto, pilhas de calculadora, somadas aos etc 36º, intellabeans ou Track Spot (estes só estavam no rider desse primeiro show porque eram locados para atender ao Mundo Livre, que era o show que fechava a noite) passaram a compor o nosso rider.

 

A segunda tournée do Cordel já representou o lançamento do primeiro CD “Cordel do fogo encantado”, produzido pelo percussionista Naná Vasconcelos, que fez participações especiais em várias cidades. Fizemos uma adequação na cenografia e as figuras rupestres se tornaram baners back light distribuídas em cena, as quais eu coloria com cores que refletiam os climas das músicas e poesias.

 

Para criação da luz intensificamos a busca e a pesquisa nos materiais alternativos, então esbarramos num outro problema: tais elementos fugiam do que era comum para as locadoras de iluminação da época e muitas vezes não havia canal de Dimer suficiente e cabos para ligar nossas traquitanas. Então passamos a investir em cabos de controle de 12 vias e até em sequências. Eles só ocupavam um canal e disparavam os “chases”. (Preparamos um contrarregra pra fazer as mudanças no Rack de Luz nos momentos exatos). Como esses cabos e material de luzes eram pesados, compramos um set para o Recife (esse viajava pelo Nordeste e Norte) e outro set em São Paulo (também usávamos no resto do país).

 

No fim da tour do primeiro CD, veio a necessidade de criar um novo espetáculo para experimentar as músicas e poesias novas. Chamamos essa turnê de intermediária, e nela as músicas que seriam gravadas no segundo disco já seriam testadas na estrada.

 

Entramos no 3º processo criativo, dessa vez com a intenção de explorar a luz até o limite com a cenografia. Um negativo da foto de uma flor de maracujá no sertão deu origem ao que se tornou a marca da banda. Foi a forma mais neutra que achamos para caracterizar essa turnê intermediária. Para cada figura foram criadas molduras de alumínio trançadas. Usamos 32 dicróicas 50w/220v bi pino para iluminar tais molduras e contávamos com a habilidade de nosso contrarregra, que agia como dimer man.

 

Nessa época, fomos morar num hotel na Av. Francisco Matarazzo, em São Paulo. Esse hotel foi muito importante pra o processo criativo do Cordel. Como nos tornamos amigos dos donos, descobrimos uma oficina no 7º andar. Passamos a usar a oficina pra criar e consertar case e cenários. O percussionista Emerson Calado era quem tinha maior habilidade e comandava esta parte.

 

Lirinha, vocalista e fundador da banda, se mostrou interessado em fazer um D e um espetáculo que falasse da Guerra de Canudos. Então iniciamos uma pesquisa sobre o tema. Lembro de lermos “Os sertões”, de Euclides da Cunha, “A guerra do fim do mundo”, de Mario Vargas Losa, e “Cangaceiros” e “Fanáticos”, de Rui Facó. Foi composta a música “A matadeira” que se referia ao canhão alemão usado pelo exército brasileiro para destruir o arraial e matar os moradores. Então veio o ataque de 11 de Setembro nos EUA e o tema “guerra” tomou uma enorme proporção, o que desestimulou o Lirinha.

 

Daí uma nova pesquisa foi iniciada, esta motivada pelo ator Zeketi. No camarim do teatro Rival, no Rio de Janeiro, ele contou a história do filho que morria de vergonha do pai, que era palhaço de um circo pobre. Certo dia soube que o pai estava no leito de morte, chegando lá tirou o paletó e falou:

 

 

O Lirinha pirou com essa história, daí surgiu o 2º CD da banda “O palhaço do circo sem futuro”. A essa altura “nossa oficina” no hotel já estava funcionando a todo vapor!

 

Levamos pra cena uma cenografia que reproduzia elementos do encarte do CD com uma intervenção mais aguda da luz. Exemplo: na música “Nossa Senhora da Paz”, eu acendia uma santa em lona Black Light com uma coroa de micro lâmpadas instaladas na cabeça dela. Pintadas com tinta de vitral num sistema misto (um grupo em série e outro em paralelo) passando por um transformador onde entrava 22ov e saia 12v. Nesta música o Lirinha mostrava as mãos, havia um led vermelho ultra brilho em cada palma, alimentados por bateria de calculadora. A reação da plateia era que pareciam “Chagas acesas” nas mãos do Lirinha. As molduras de alumínio também vieram nessa turnê, a distribuição dos elementos em cena causavam a ilusão de vitrais. As luzes introduzidas nesses “vitrais” eram lâmpadas de geladeira e vendiam uma ilusão de que a luz saltava das figuras numa sensação 3D.

 

Outro show intermediário foi montado entre o segundo CD e o DVD. A banda passou a adotar esse sistema, então ao contrário das outras bandas. O Cordel primeiro montava o show e depois extraia dele as músicas que iriam compor o próximo disco. Essas músicas eram removidas das turnês intermediárias.

 

Na gravação do DVD MTV Apresenta Cordel do Fogo Encantado, queríamos que o DVD ficasse com a cara da trajetória da banda, por isso o negativo da flor do maracujá era a figura que melhor representava. Eles foram impressos com silk screen em círculos de acrílico e eram iluminador por etc 36º. Na música “Boi luzeiro”, usamos um boi confeccionado em arame no qual revelávamos o manipulador (o tripa). Como o nome já sugeria, usei 120 micro lâmpadas de 12v no corpo do boi, alimentadas por 2 baterias seladas de 6v ligadas em série com controle na mão esquerda do manipulador. Para os olhos, usei 2 ar11 4º de 12v /50w, alimentadas por uma bateria selada de 12v com o controle na mão direita do manipulador. Este boi já havia sido experimentado antes, na turnê anterior ao primeiro CD.

 

A tour do DVD seguiu com uma outra novidade: foi criado um boneco do tamanho de uma pessoa, todo em arame. Utilizei 60 leds ultrabilho de 1,5v num circuito misto, alimentados por duas baterias seladas de 6v ligadas em série. Para os olhos utilizei 2 AR 70 de 12v ligadas em paralelo e alimentadas por uma bateria selada de 12v. Entrava um sampler e o Lirinha iniciava manipulando o boneco. A plateia ia a loucura porque essa era a abertura do show.

 

A turnê intermediária entre o DVD e o CD “Transfiguração” foi marcada pela exploração da figura dos bonecos como cenografia. Eles foram distribuídos no alto: eram cinco, todos de arame cobertos com o tecido JUTA, então utilizei dicróicas soquetes  e-­‐27  50w/220v  espalhadas  por  dentro  de  cada  boneco.  Como  a  juta  é translúcida, os bonecos acendiam em cena, outro canal acionavam os olhos que eram expostos e foram usadas AR 70 50W/12V com transformador. O resultado dos olhos eram fachos marcados na fumaça.

 

Transfiguração: Para esta investimos em infláveis. Mais uma vez driblamos o excesso de bagagem, pois os elementos eram gigantes, mas pra levar conosco cabiam numa mochila. Eram dois elementos: Uma borboleta que media aproximadamente 1m de altura x 3,5 de largura x 50cm de profundidade e uma lagarta com 2m de altura x 5m de largura x 50cm profundidade. O corte nos tecidos dessas figuras foi muito bem feito e a grafitagem foi realizada com muita precisão, de modo que, apesar de serem infláveis, não ficaram com aspecto de brinquedo. Para iluminar essas figuras, refletores par 64 e moving light wash eram usados. As mudanças de cores nos tempos das músicas transformavam as figuras.

 

A turnê intermediária se chamou “A trajetória da terra” e foi a última da banda. Usávamos 40 flashs de 50w/22ov presos aos sets de percussão, ribaltas de dicróica 50w /220v construídas na oficina do hotel, e atomics 3000 de contra luz de chão nas percussões davam a batida dos trovões da música “Tempestade”. Os bonecos suspensos e a borboleta dos infláveis também estavam inclusos.

 

Eis que se passaram 11 anos desde o dia em que vi o Cordel pela primeira vez, por engano, no Teatro Barreto Jr., em Recife. O vocalista pediu o afastamento e por razões óbvias a banda acabou, deixando em mim a certeza de que uma grande investigação artística foi realizada em pouco mais de uma década e que pra mim foi um privilégio ter dado esse mergulho tão intenso nas artes.

 

Download do projeto

 

 

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