Guilherme Bonfanti | Design, Cena e Luz: Anotações

Design, Cena e Luz: Anotações

Eduardo Tudella

A recente tentativa de traduzir a expressão anglo-americana lighting design para a língua portuguesa, no ambiente das artes cênicas brasileiras, introduziu opções como “desenho de luz”, “design de luz” e, em consequência, certos documentos podem apresentar profissionais com o título de “desenhista de luz”, “designer de luz” e até “desenhador de luz”, entre outros, interagindo com o processo dinâmico da linguagem falada. Pode-se identificar nestas denominações a intenção de qualificar positivamente a atividade. O objetivo deste texto é apresentar uma suspeita: a expressão lighting designer pode abrigar mais que abstrações como charme, glamour ou aparente sofisticação. Para formular de outra maneira, pergunto-me: se o programa de um espetáculo me reserva o título de lighting designer, ou qualquer outro termo ou expressão que dele sejam derivados, o que devo dar em troca ou qual deve ser a contrapartida?

 

Aliás, não se observam no teatro brasileiro quaisquer tentativas de utilização de expressões como set designer (cenógrafo), costume designer (figurinista) ou make-up designer (maquiador), entre outros. A ausência dessas expressões desde o momento em que o termo design começa a ser relacionado com as artes cênicas no Brasil, provavelmente na década de 1980, pode ser compreensível, basta lembrar que denominações como cenógrafo, maquiador e figurinista já se encontravam em uso na nossa língua para caracterizar funções já estabelecidas no nosso ambiente teatral, dispensando a importação de quaisquer correspondentes estrangeiros.
 

Início, então, buscando uma compreensão abrangente do tema. Quando se refere ao verbo to design, o American heritage dictionary estabelece relações com os atos de conceber, criar, projetar, planejar algo, e expande essa ação a diversificadas atividades, inclusive artísticas. Do ponto de vista do nome, do substantivo design, a primeira referência é estabelecida com o desenho ou a perspectiva, derivando para a representação gráfica, para projetos de construção ou manufatura. Design, neste sentido, tanto pode ser apreendido como a arte ou a prática de projetar, como pode significar o plano em si, o projeto1. O The new Merriam-Webster dictionary traz variações que caracterizam design como a ação de conceber e planejar mentalmente, apresentando, para o substantivo, a ideia de um arranjo de elementos ou detalhes num produto ou trabalho de arte2. Tal abordagem pode ser decisivamente ligada à atividade do theatre lighting designer, ou, designer que atua nas artes cênicas aplicando a luz.

 

O trabalho do theatre lighting designer, portanto, pode ser compreendido como uma atividade criativa, um labor artístico. Como tal, inclui tanto uma face estética como outra de natureza técnica que interagem dinamicamente. Para uma aproximação ampliada com o vocábulo design cabe destacar o verbo to draw – desenhar, no idioma anglo-americano –, ou seja, a ação de representar objetos ou formas numa superfície, principalmente através do uso de linhas. Esta aproximação permite acrescentar certos elementos que podem contribuir para o amadurecimento de uma possível discussão do tema, uma vez que se pode destacar o desenho e o ato de desenhar, o que sugere a consideração de outro substantivo, drawing, ou desenho.
 

Outro ângulo dessa mesma questão pode ser vislumbrado registrando-se o termo drafting, no mesmo idioma, desenho técnico – ou seja: planta, corte e detalhamentos, em escala –, que caracteriza ou define uma representação sistematizada de estruturas mecânicas e de arquitetura na qual estão incluídas especificações de dimensões (medidas). A relação direta com o desenho técnico merece estudo específico no que concerne à sua aplicação em projetos de luz para as artes cênicas, uma vez que propostas de sistematização desses procedimentos vêm sendo discutidas com regularidade em outros países há mais de meio século, e agora começam a esboçar-se no Brasil. Isso inclui o desenho técnico para o teatro, tema para o qual alguns autores, como Jean Rosenthal, Rich Rose, William Warfel e Patrícia Woodbridge, entre outros, têm devotado parte substancial do seu trabalho.
 

Quando se traduz o termo design como “desenho”, em língua portuguesa, cabe levar em conta o que está latente nesse “desenho”, como destaquei até aqui (drawing e drafting). No caso particular da luz para a cena cabe salientar que determinadas comunidades artísticas fora do Brasil já apresentam significativa sofisticação na elaboração de projetos específicos, incluindo passos bastante definidos do processo. Acentue-se que a discussão desses procedimentos ocorre em diversas instâncias na América do Norte, tanto no teatro profissional como na comunidade acadêmica – que abriga cursos nos diversos níveis, incluindo a pós-graduação –, estendendo-se às entidades sindicais, cujas regras para aceitação de novos membros interagem com as normas aplicadas no ambiente acadêmico.

 

Se considerarmos a prática brasileira, fundamentada na liberdade de cada um, sem normalização que caracterize o projeto como um conjunto de particularidades universalmente reconhecido, os procedimentos aplicados fora do nosso país podem ser interpretados como rigidez excessiva. Excesso de liberdade, neste caso, pode reduzir a função de um projeto como instrumento de comunicação sistematizada. Pode parecer confortável elaborar um “projeto” para o qual se fazem as próprias regras; o seu responsável, contudo, pode estar abrindo mão do direito da comunicação universal das suas intenções, uma vez que a ausência do caráter normativo delineia um código fechado, reconhecido quiçá pelo autor e/ou por aqueles mais próximos, tais como assistentes. Desse modo, o projeto pode carecer de precisão, perdendo autonomia no processo de informar, indispensável ao teatro na sua condição exemplar de obra de arte composta que reúne em seu planejamento e execução certo número de artistas, técnicos e artesãos cujos intercâmbio de ideias e interação serão prejudicados, ou até impedidos. O designer que atua na cena deve, como qualquer outro, observar a aplicação sistematizada, tanto de drafting – desenho técnico – como de sketches3, e até de outros elementos da representação gráfica, em projetos de luz para espetáculos, como os autores mencionados anteriormente podem comprovar.
 

A expressão lighting design, portanto, revela intimidade com habilidades e competências técnicas aliadas a pressupostos estéticos que criam a visualidade de um espetáculo. Esse caráter técnico-estético multifacetado põe positivamente em jogo passos diversificados, cada um deles com objetivos particulares. Tais passos e objetivos representam ângulo particular de pesquisa acerca do projeto de luz para espetáculos, que exigiria mais que um artigo, provavelmente um conjunto de textos ou um título específico para introduzir a questão. Aplicar o termo design na cena implica um processo criativo, incluindo questões de estilo, afirmações poéticas, e pode sugerir inventividade.
 

Stanley McCandless (1897-1967), reverenciado como um dos principais edificadores de uma posição do theatre lighting designer – aquele designer que aplica a luz no teatro – e que teve entre seus estudantes Jean Rosenthal (1912- 1969), na Yale School of Drama, diz: “O design, ou mais especificamente o planejamento e a execução da luz de uma montagem, está frequentemente envolvido por um véu de mistério que, sem dúvida, se origina na falta de conhecimento, tanto dos limites quanto das potencialidades do problema”.

 

Num certo sentido, McCandless, simplifica e coloca de modo direto aquilo que se espera do theatre lighting designer. Ainda que pareça fundir planejamento e concepção, ele resume parte do processo. Ao ler sua assertiva, contudo, deve-se ter em mente que sua escrita data do início do segundo quarto do século passado e o mistério pode ter se dissipado, em parte devido ao facilitado acesso à informação, na contemporaneidade. O que parece grave, entretanto, é a carência de discussões qualificadas desses limites e potencialidades no ambiente acadêmico brasileiro, discussões que abordem também a possível presença estética da luz na práxis cênica, relativizando o interesse exclusivo na tecnologia e nos efeitos. Quero dizer, mesmo com a aplicação das “novas tecnologias” e da improvisação que procura desconstruir modelos considerados ultrapassados, enquanto for registrada a presença da luz, será imprescindível sua abordagem como sujeito estético.
 

McCandless inclui a preocupação com o estabelecimento de parâmetros que apontem para um conjunto de procedimentos orientadores da postura do theatre lighting designer. Com o passar dos anos, o seu trabalho ganhou contribuições de outros autores, sublinhando-se a aplicação propriamente dita desses procedimentos na elaboração de projetos, na efetivação de ideias em cena, assim como na avaliação do processo e dos resultados alcançados.
 

A segunda edição do The Oxford companion to the theatre, em 1957, comenta: “Nos EUA, com poucas exceções, o designer assume completa responsabilidade do efeito visual final no palco. Na Inglaterra, isso é responsabilidade do diretor (ou produtor). Nos EUA o designer trabalha com o eletricista ou, em alguns casos, com o chamado especialista em luz (lighting specialist)”5. O termo designer, nesse contexto, refere-se ao cenógrafo, como função dominante no tratamento visual da cena. O eletricista fornecia apoio técnico para a construção da narrativa visual do espetáculo. Já se insinua, contudo, a figura de um “especialista” em luz. Em 1961, na Inglaterra, é fundada a Sociedade Britânica de Lighting Designers (Society of British Theatre Lighting Designers – SBTLD), revelando uma nova abordagem da contribuição da luz para a cena. Dois anos depois, nos EUA, de acordo com Lee Watson, um passo decisivo é dado pelos artistas que desempenhavam essa função: “A categoria própria para inscrição nos sindicatos na condição de Lighting Designer foi criada em 1963, graças (em grande parte) aos esforços persistentes de especialistas em lighting design e inscritos como ‘Outros’, particularmente Tharon Musser e Jean Rosenthal […]”.
 

Parece tratar-se, então, de uma atividade que alcança agora mais de três quartos de século, tendo o seu reconhecimento oficializado nos órgãos de classe desde o início da segunda metade do século passado, nos EUA. Ainda assim, se for tomado como elemento para essa análise o testemunho de um dos mais importantes diretores teatrais da América do Norte, Harold Clurman (1901-1980), na década de 1970 pode-se identificar ainda certa imprecisão no que se refere à presença do lighting designer nas artes cênicas. No seu trabalho On directing, ao mencionar os ensaios técnicos ele afirma: “[…] três ou quatro dias (uma semana para musicais) devem ser devotados a todos os ajustes necessários antes das primeiras sessões prévias nas quais serão cobrados ingressos; a verdade é que durante esses dias o palco é liberado para carpinteiros, eletricistas, aderecistas, ao designer e, se o designer não faz ele mesmo a luz do espetáculo, ao expert em luz”.
 

Então, já em 1972, Clurman ainda menciona esse lighting expert, e também lighting specialist, reservando a expressão designer para se referir ao set designer, ou cenógrafo: “Diretores ingleses orgulham-se de fazer a luz das suas montagens. Na América do Norte os especialistas em luz tornaram-se predominantes. Alguns cenógrafos – principalmente Jo Mielziner – fazem sua própria luz. Poucos diretores fazem isso. […] Eu sei o que quero para a luz de uma peça, mas não tenho familiaridade com a designação precisa, a quantidade e a exata disposição do equipamento”.
 

A assertiva de Clurman explica de modo simples uma das faces do papel contemporâneo do lighting designer: identificar a visualidade solicitada pelo espetáculo [nesse caso, provocado pela proposição do diretor], como problema cuja abordagem demanda apropriação técnica de um conjunto organizado que inclui equipamento, acessórios, assim como sistemas de controle, e registro das ideias indispensáveis à efetivação do seu projeto. O depoimento de Clurman também sugere que Mielziner poderia assinar como lighting designer, ou dividir a responsabilidade e o crédito com quem porventura tomasse parte na criação e planejamento. Vale sublinhar que as ideias aqui representam parte determinante da instância estético-poética do trabalho desse designer.
 

A presença de um responsável pela luz que traz para o espetáculo a mencionada familiaridade com esse processo é bastante recente quando são levados em conta os 25 séculos do teatro. Na segunda metade do século passado destacou-se a artista norte-americana Jean Rosenthal (1912-1969), com a publicação de um dos mais importantes trabalhos acerca da luz, no teatro norte-americano até aquele momento. Já no primeiro capítulo, ela inclui testemunho fundamental para a presente discussão: “Sou uma lighting designer. Estou na profissão desde que ela existe. A flexibilidade alcançada pela luz elétrica antes do período do meu nascimento é surpreendente.
 

Penso que simplesmente nunca ocorreu a alguém, até 1930, que a iluminação de alguma coisa pudesse representar a tarefa exclusiva de um artesão, ou que pudesse ser realizada sob a égide artística de um especialista”. De acordo com seu testemunho pode-se considerar a década de 30, no século XX, como etapa inicial do aparecimento do (theatre) lighting designer. Rosenthal começou seu aprendizado aos 17 anos, na Neighborhood Playhouse, em Nova York, uma escola voltada para a educação teatral. Ela confidencia que detestava trabalhar como atriz ou dançarina, o que acabou por levá-la à posição de assistente técnica de Martha Graham. Assim começou uma carreira determinante para as artes cênicas norte-americanas.
 

Um ano e meio depois ela ingressou na George Pierce Baker Workshop, em New Haven, onde passou três anos, sem nunca haver testemunhado – segundo ela mesma afirma – qualquer menção à Universidade de Yale, onde estudaria com reconhecidos artistas-educadores como  Donald Oeslanger e Stanley McCandless, sobre quem escreveu com atitude crítica e muita admiração: “Eu sempre senti, até onde isso possa interessar nos EUA, que McCandless era de fato o avô de todos nós. Não porque tenha sido o primeiro, mas porque ele estabeleceu um ordenamento específico em relação à luz [em um espetáculo] e determinou o mais importante: uma atitude que exige técnica e método para organizar ideias”.
 

Note-se que tais considerações estão vinculadas ao teatro da América do Norte, o que não exclui a possibilidade de o aparecimento dessa égide artística ter ocorrido antes em outro país. Evito discutir aqui onde foi criado ou quem criou tal enfoque, interessando-me a incorporação pelo ambiente teatral brasileiro da expressão (theatre) lighting designer, originada na cultura anglo-americana e de relevância particular na atividade daquele que assume a responsabilidade pela contribuição da luz para o espetáculo. As reflexões de Jean Rosenthal, isso importa, podem resultar estimulantes para aquele que se interessa por tal contribuição. Na condição de pioneira da atividade, responsável por passos substanciais no que se refere à natureza do projeto de luz para o evento cênico e, consequentemente, pela inclusão de uma ótica artística nesse processo, ela indica um alto grau de responsabilidade para o lighting designer, afirmando: “A luz afeta tudo o que toca. Como você vê aquilo que vê, como você se sente a respeito do que vê, como você ouve aquilo que está escutando”.
 

O aparecimento da atividade do lighting designer tem raízes não somente na especialização técnica exigida pelos conhecimentos de eletricidade, mas principalmente na inauguração de uma maneira inovadora de pensar a cena, vislumbrando-se uma nova face do teatro, incorporadora de uma nova contribuição artística para a efetivação da cena. Um objeto de estudo que apresenta tamanha cumplicidade com a visão, sugere familiaridade do designer com a ciência, com a arte e com a filosofia. Assim como em qualquer atividade artística.
 

Mary C. Henderson destaca outro artista, considerando-o aquele que criou o papel do lighting designer no teatro norte-americano: “Se pudermos dizer que alguém criou o papel do lighting designer no teatro norte-americano moderno, essa pessoa é Abe Feder”12. Henderson conta que, assistindo a uma apresentação [performance] do mágico Great Thurston, em um teatro de sua cidade natal, Milwaukee, em 1923, Abe Feder (1909-1997) se extasiou com a aplicação da luz e, ingressando no Carnegie Institute of Technology para estudar engenharia e arquitetura, ele dedicou a maior parte das suas horas produtivas trabalhando na luz para espetáculos do Departamento de Teatro. Em 1928, ainda morando em Chicago, Feder foi responsável pela luz no Goodman Theatre e, dois anos depois, estava em Nova Iorque, projetando a luz para os espetáculos do teatro Yiddish, entre outras atividades. Aos 23 anos já fazia sua estreia na Broadway, com o espetáculo Trick for trick (Engodo).
 

Nos anos seguintes Feder transitou livremente entre o teatro profissional e a vanguarda, tendo sido o primeiro a registrar e assumir responsabilidade individual pela luz de um espetáculo, trabalhando tanto para o Group Theatre quanto para o Federal Theatre Project, onde atuou como Diretor Técnico (Technical Director/ TD), profissional encontrado nas mais diversas atividades e com diferentes atribuições. No teatro norte-americano o TD é responsável pela supervisão da construção e implantação do dispositivo cenográfico. Seu trabalho inclui a elaboração de desenhos técnicos, a partir do projeto do cenógrafo, para comunicar detalhes da construção à equipe responsável. Feder desempenhou essa função, em projetos dirigidos por Orson Wells (1915-1985).
 

Na opinião de Henderson, ele dá um passo decisivo: “Quando, em 1934, Lighting by Abe Feder (Luz de Abe Feder) começou a aparecer abaixo do título das peças, determinou-se a chegada de um novo tipo de colaborador teatral. Em 1962 o United Scenic Artists (sindicato) reconheceu a Luz como uma especialidade separada e distinta, ampliando sua lista de categorias para incluir lighting designers”.
 

A montagem do Doctor Faustus, (Doutor Fausto) de Wells, em 1937, revelou uma maneira particular e inovadora da aplicação da luz, criando focos,  cortinas e paredes de luz, surpreendendo público e crítica. Importante dizer que já nesse momento Feder aplica o Light plot – ou planta de luz – que, ainda incipiente naquele momento, já trazia o indício daquilo que se tornaria conhecido como item decisivo de um projeto sob a responsabilidade de um (theatre) lighting designer. Ele é responsável, então, por importantes passos no rumo da sistematização.

 

Vale lembrar que Jean Rosenthal trabalhou como assistente técnica no Federal Theatre Project – FTP – onde Feder era o lighting designer. Henderson registra:

Rosenthal recebeu seu primeiro crédito como lighting designer na Broadway em 1943 na montagem de Ricardo III […]. A partir desse momento ela se transformou na principal lighting designer da Broadway. Suas contribuições foram inúmeras e duradouras, mas seu principal legado foi estabelecer a luz no teatro como uma arte precisa e flexível. Ela inventou símbolos para identificar instrumentos e cores e desenhou plantas de luz [light plots] nas quais nada era deixado ao acaso. Ela insistia em ensaios para a luz, nos quais cada equívoco poderia ser rapidamente observado, permitindo mudanças.14 Ainda hoje se tem notícia de espetáculos contemporâneos que estreiam sem um único ensaio para a luz. Em parte, por pressões de natureza econômica que obrigam um diretor e sua equipe a levar à cena um espetáculo por amadurecer. Afinal, pode não ser suficiente ensaiar exaustivamente fora do teatro – ou local onde o evento vai ocorrer – chegando aí apenas num momento tão próximo da estreia que não permite qualquer amadurecimento da visualidade, o que inclui ensaios de luz. Ao introduzir mudanças contundentes que incluíam controle e precisão, Rosenthal instituiu relações particulares com o termo design, criando uma parceria abrangente com a práxis cênica. Parcerias dessa natureza contribuem para expandir e aprofundar os modos de atuação da luz na cena.
 

Francis Hodge, escrevendo sobre direção teatral, em um capítulo intitulado “Fazer design é dirigir” (Designing is directing) deixa uma assertiva que sugere a abrangência dessa atividade: “O Design é a fisicalização de uma ideia poética”15. Publicando seu trabalho em 1971, Hodge estava, provavelmente, familiarizado com o uso do termo physicallyzation (fisicalização) no livro da educadora, diretora e atriz Viola Spolin (1906-1994), Improvisação para o teatro, de 1963. Esse conceito pode provocar muitas discussões e é usado por Spolin de modo particular no trato com o ator, com a principal preocupação de: “[…] encorajar a liberdade de expressão física”. Amplio sua aplicação para registrar que tal “fisicalização” somente se efetivará, na cena que se conhece hoje, com a atuação da luz e, inevitavelmente, da sombra. Ainda que o público das artes cênicas venha testemunhando propostas muitíssimo radicais ao longo da história, a exclusão da luz só poderia ser discutida, até hoje, como exceção.
 

Tais considerações emprestam grande liberdade ao lighting designer e, simultaneamente, apresentam enormes desafios. “Fisicalizar” uma ideia, uma poética, pode até soar como abordagem romântica se penso no design como um processo facilitador da produção em série. Observando, no entanto, o (theatre) lighting design como ambiente que pode abrigar exaustivas discussões em torno do pensamento visual no teatro, pode-se compreender a necessidade de o artista fundamentar cada decisão no intuito de revelar a “fisicalização” de ideias provocadas por conceitos particulares em cada evento de natureza cênica.
 

Relacionando design e luz no espetáculo teatral, William Warfel, por sua vez, indica um caminho simples e direto: “[…] design é a aplicação expressiva da luz num texto e no conceito de uma montagem”. Ainda que se possa usar a crítica fácil, sublinhando a presença do texto, da dramaturgia como um ponto redutor ou negativo na assertiva de Warfel, o que nela me interessa é a relação entre a expressividade da montagem, os conceitos que a sustentam, e a luz. Compreendo, pois, a atuação da luz como resposta a questões originadas nas especificidades de todas as práxis cênicas e de cada práxis cênica em particular, como um pensamento visual elaborado em congruência com características específicas do teatro na sua condição de arte composta.
 

Discuto, afinal, uma manifestação artística que inclui diversificadas contribuições, originadas no trabalho do ator, do figurinista, do cenógrafo, do músico, do maquiador, do dramaturgo, do diretor, daquele que se responsabiliza pela luz, entre outros, sugerindo uma interpretação mais abrangente para o termo design. Tal abrangência pode, inclusive, indicar discussões acerca da aplicação de um conceito específico, não apenas no trabalho do diretor de um espetáculo, mas também no trabalho criativo dos designers. Esse conceito atuaria como principal alicerce e provocador para o processo de criação.
 

Pode-se observar, então, que a abordagem da cena como ocorrência de natureza estético-visual demanda reflexões ainda por se efetivar. Isso poderia ser considerado, provavelmente, um dos motivos relevantes para que a teoria e a crítica ainda tateiem quando se trata de investigar os aspectos visuais da cena e, em particular, quando se trata da luz.
 

As considerações introdutórias de Richard H. Palmer – autor presente nas listas bibliográficas dos principais estudos norte-americanos e já mencionado no Brasil – podem contribuir para o encaminhamento de conclusões, quando ele explicita sua opinião sobre essa discussão:
 

A palavra design pode indicar “uma planta” [um plano] ou uma “estrutura” e um lighting designer cria ambos, planejando a estrutura da luz ao manipular determinadas propriedades controláveis da luz para atender a um conjunto especifico de funções. O designer deve conhecer não apenas os instrumentos e os sistemas de controle, a luz propriamente dita e, finalmente, o que e como o espectador vê. A planta de luz é apenas o meio através do qual se projeta a experiência visual do espectador.
 

Ainda que certas considerações devam ser questionadas, o trabalho de Palmer pode contribuir para a avaliação das diversificadas nuances das atribuições do designer, assim como o alcance da sua contribuição para a cena. Provocações finais acerca do pape l do theater lighting designer O design deve ser apreendido como um princípio dinâmico, que ganha traços diferenciados de acordo com o ambiente no qual se está atuando. E, se o teatro incorpora um designer, certamente exigirá dele a postura de um artista-pesquisador que se disponha a conceber, experimentar e planejar, considerando os princípios ativos da cena. Um designer responsável pela luz de um evento deve estar habilitado a contribuir para a visualidade do espetáculo.
 

E, conquanto seja possível encontrar um razoável nível de publicações em língua estrangeira acerca da contribuição da luz para o espetáculo, é difícil dizer o mesmo da bibliografia produzida no Brasil, até este momento, apesar do esforço de alguns pesquisadores. Tal situação estabelece dificuldades para o jovem que, ao iniciar uma carreira na área, pretende levar em conta o conhecimento que o antecedeu. Poder-se-ia dizer que tais dificuldades se apresentam até mesmo para o profissional com alguma experiência que, apesar disso, tem reduzido acesso à literatura citada, povoada de expressões de caráter eminentemente técnico e, em alguns casos, de reflexões elaboradas no interior de um universo muito particular. Por outro lado, glossários que reúnem fórmulas, incompletos e imprecisos, podem resultar em cartilhas obsoletas já na sua publicação, ignorando a pesquisa constante que aponta, frequentemente, novos caminhos. Nesse universo, as traduções de manuais de equipamento e/ou acessórios, nem sempre completas ou corretas, ganham status de principal item disponível de literatura.
 

A expressão theatre lighting designer parece representar mais do que um título atraente e inclui um processo, com estrutura e objetivos definidos. Identificando tal processo, o interessado poderá decidir sobre a validade da aplicação do título ao seu próprio trabalho, refletindo sobre aquilo que vem sendo considerado como contribuição artística de um especialista. Outra maneira de encarar a questão seria ignorar a discussão e assumir o título, adaptando-o à sua maneira particular. Quaisquer que sejam as escolhas, vale ponderar que o vocábulo sugere uma compreensão que inclui mais que a identificação de técnica e tecnologia, e mais que a abordagem do desenho como uma abstração. Talvez não fosse demais lembrar que a luz solicita para si a possibilidade de contribuir efetivamente com os aspectos estéticos das artes cênicas, determinando substancialmente a qualidade artística do objeto que será levado ao espectador. Isso indica, provavelmente, habilidades de caráter muito específico, incluindo a familiaridade com métodos e metodologias sempre em movimento, além do trânsito pelas artes visuais, pela arte em si, pelo conhecimento.
 

Nesse contexto, interessa-me grifar a necessidade de estudos particularmente voltados para as relações entre a luz e as artes cênicas, sob a ótica da formação de um artista familiarizado com o ambiente dos técnicos. Por outro lado, o designer deve construir progressivamente sua própria formação, aproximando-se da natureza estético-poética da sua atividade já que, apesar do esforço de muitos artistas-educadores, até o momento da redação desse texto não há notícia de programas de ensino no Brasil trabalhando especificamente com a formação do theatre lighting designer, no nível do terceiro grau.
 

Fica sugerida uma via de mão dupla: a academia pode incorporar a discussão das nuances particulares da pesquisa efetivada pelo lighting designer, assim como o iluminador pode ampliar sua apreensão do processo acadêmico, avaliando um possível trânsito nesse ambiente. Parece-me que no estágio atual urge a incorporação da flexibilidade como principal facilitadora desse trânsito, que pode se dar nos dois sentidos.

 

Eduardo Tudella é cenógrafo (UNIRIO ) e lighting designer (NYU), e professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia.

 

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